Ah, Um Soneto…
de Álvaro de CamposMeu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
Álvaro de Campos (Tavira ou Lisboa, 13 ou 15 de Outubro de 1890 — 1935) é um dos heterónimos mais conhecidos, verdadeiro alter ego do escritor português Fernando Pessoa, que fez uma biografia para cada uma das suas personalidades literárias, a que chamou heterónimos.
Como alter ego de Pessoa, Álvaro de Campos sucedeu a Alexander Search, um heterónimo que surgiu ainda na África do Sul, onde Pessoa passou a infância e adolescência. Depois de “uma educação vulgar de liceu” Álvaro de Campos foi “estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval” em Glasgow, realizou uma viagem ao Oriente, registada no seu poema “Opiário”, e trabalhou em Londres, Barrow on Furness e Newcastle upon Tyne (1922).
Desempregado, teria voltado para Lisboa em 1926, mergulhando então num pessimismo decadentista. O poema “Tabacaria”, de 1928, foi uma das criações de Álvaro de Campos.
Escola Literária: (Modernismo)
Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Maieável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!
Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo,
A banalidade devorante das caras de toda a gente!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem – um antes de ontem que é sempre…
Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou?
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram
Cárcere do ser, não há libertação de ti?
Cárcere do pensar não há libertação de ti?
Ah, não, nenhuma, nem morte nem vida nem Deus!
Depois de escrever, leio…
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?