Dorme Enquanto Eu Velo
de Fernando PessoaDorme, dorme. dorme,
Vaga em teu sorrir...
Não se regozija com a injustiça, mas se regozija com a verdade;
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
O amor jamais acaba.
Não me basta saber que sou amado,
Nem só desejo o teu amor: desejo
Ter nos braços teu corpo delicado,
Ter na boca a doçura de teu beijo.
Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo. Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem...
Á luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
Por quem foi que me trocaram
Quando estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares, sorri.
Assim firmes, duras,
entre as coisas fluidas,
fiquem as palavras,
as vossas palavras.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas