Contemplo o lago mudo
de Fernando PessoaO lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo.
Nãosei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo
O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo.
Nãosei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo
Quando o Outono leva a folha rendilhada,
O vestido real da branda Primavera,
O rio abre-lhe os braços e leva amortalhada
A pequenina folha, essa ideal quimera!
Deixa-te estar quietinho! Não amais
A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais,
Não valem o prazer duma saudade!
Que diga o mundo e a gente o que quiser!
- O que é que isso me faz?... o que me importa?...
O frio que trago dentro gela e corta
Tudo que é sonho e graça na mulher!
Um dia, fez Deuz uns olhos
Tão azuis como esses teus,
Que olharam admirados
A taça branca dos céus.
Acreditar em mulheres
É coisa que ninguém faz;
Tudo quanto amor constrói
A incostância desfaz.
Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. Envelhecemos juntos. A face do Outro é o meu calendário implacável.
Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Maieável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Talvez a cerva branca do meu sonho
Do côncavo rebanho se perdesse.
Talvez do eco dum distante canto
Nascesse a poesia que fazemos.
Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo,
A banalidade devorante das caras de toda a gente!